Evangelho de São Lucas

O EVANGELHO

Nota: O texto abaixo referente ao Evangelho de São Lucas é uma tradução do original espanhol, escrito por Luis Heriberto Rivas, Sacerdote da Arquidiocese de Buenos Aires, licenciado em Teologia pela Universidade Católica Argentina e em Sagradas Escrituras pela Comissão Bíblica do Vaticano.

1 – Aspecto do Livro

Este livro difere dos outros, principalmente, pela sua extensão: Enquanto que os outros evangelistas terminam a sua obra com a ressurreição do Senhor, Lucas continua até á predicação dos Apóstolos, terminando com a chegada de São Paulo a Roma.

A sua obra divide-se em duas partes: o Evangelho e o Livro dos Atos dos Apóstolos. Os dois livros formam uma obra só. Para compreender a sua mensagem é importante ter presentes as duas partes.

Lucas é um narrador culto. É o que melhor escreve de todos os evangelistas, é o que utiliza a língua grega mais corretamente e é aquele que demonstra uma cultura maior. Segue fielmente o Evangelho de Marcos como fonte, corrigindo frequentemente as imperfeições de linguagem.

Durante um tempo dizia-se que Lucas tinha sido médico, porque se pensava que seria o mesmo mencionado em Colossenses 4, 14; Filêmon 24; 2 Timóteo 4, 11.

Alguns diziam que tinha essa profissão pelos termos que utilizava na sua obra, sobretudo por causa da maneira que falava sobre os doentes. Mas os estudos atuais fizeram-nos ver que esse vocabulário e essa maneira de expressar-se aparecem noutros escritores dessa época que não eram médicos e também na tradução grega do Antigo Testamento, sendo uma forma de falar de uma pessoa culta.

Em relação ao Lucas mencionado nas cartas de São Paulo, não há nenhum indício que permita saber com certeza se trata-se do autor do Evangelho ou de outra pessoa com o mesmo nome.

Durante muito tempo susteve-se que São Lucas teria sido um dos companheiros de viagem de São Paulo, porque no Livro dos Atos há várias passagens em que se utiliza a primeira pessoa para narrar certas peripécias da viagem (16, 10-17; 20, 5-21,18; 27, 1-28,16). As investigações levam à conclusão que Lucas não tinha conhecido pessoalmente São Paulo.

Atualmente, os comentaristas opinam que Lucas teria escrito a sua obra utilizando muitas fontes, entre as quais, se encontraria o diário de viagem de algum companheiro do Apóstolo. Os textos na primeira pessoa pertenceriam a esse diário. A obra de Lucas terá sido publicada entre os anos 80 e 90.

Um escritor do século XVI disse que conhecia um escrito do século VI em que se dizia que São Lucas tinha pintado um retrato da Santíssima Virgem. A partir desse momento começaram a aparecer quadros da Virgem que se apresentavam como pintados por Lucas. Em algumas obras de arte aparece São Lucas em atitude de pintar um quadro. No entanto, esta noticia não tem nenhum apoio na Antiguidade. Antes do século XVI ninguém a conhecia, e os quadros com os retratos da Virgem foram pintados na época medieval.

2 – Ordem da Narração

O Evangelho de São Lucas, assim como os outros, não segue uma ordem histórica. Não pretende narrar os factos na mesma ordem em que foram acontecendo, nem tão pouco tem uma ordem geográfica, mas principalmente uma ordem teológica.

Apesar de seguir o Evangelho de São Marcos como modelo, em vários momentos afasta-se da sua ordem para manter a impressão de que a partir de 9, 51, Jesus vai a caminho de Jerusalém. Ainda em dois momentos, separa-se de Marcos, para introduzir material que obteve de uma fonte também utilizada por Mateus e de suas fontes próprias. São dois parêntesis que se abrem: Menor: Lucas 6,20 – 7,50; Maior: Lucas 9,51 – 18, 14. Aquilo que se encontra dentro destes dois parêntesis não está no Evangelho de São Marcos.

No Livro dos Atos pode-se perceber que trabalha com material recolhido de diferentes comunidades (judaicas, helenistas, diários de viagem, etc.), mas como não há outro livro que com o qual se possa comparar, é muito difícil determinar quais são as fontes que utiliza.

São Lucas insiste que o fim da viagem é Jerusalém (Lucas 9, 51; 13, 22; 17, 11; 19, 11.28), porque é ali onde se devem cumprir as Escrituras (18, 31), e onde devem permanecer os discípulos depois da Ascensão (Lucas 24, 49; Atos 1, 4) até que recebam a prometida vinda do Espírito Santo.

Depois da Ressurreição e Ascensão de Cristo, vem a segunda parte do livro: Os Atos dos Apóstolos. Nesta segunda parte, a ordem é inversa: os discípulos recebem o Espírito Santo em Jerusalém, e é daí que partem para a predicação do Evangelho: “Começando por Jerusalém… Devia predicar-se a todas as nações” (Lucas 24, 47); “Mas ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo”. (Atos 1, 8)

Depois da passagem do dia de Pentecostes (Atos 2, 1-41), a Igreja começa a expandir-se gradualmente. Em primeiro lugar no ambiente judaico (Atos 3 e 5), mais tarde são evangelizados os samaritanos (Atos 8, 4-25), um eunuco etíope prosélito (Atos 8, 26-40). Finalmente, a Palavra é anunciada a Cornélio, o primeiro pagão a receber o batismo (Atos 10). Daí em diante começa a missão junto aos pagãos, levada a cabo por São Paulo que foi eleito e enviado pelo Espírito Santo (Atos 13, 2-4).

No Evangelho, o relato concentra-se em Jerusalém, no Livro dos Atos, alarga-se a partir de Jerusalém, seguindo pela Judeia, Samaria, Ásia Menor, Grécia e finalmente Roma.

Quando São Paulo chega a Roma, Lucas pode por um ponto final na sua obra. Já se cumpriram as profecias messiânicas: Jesus morreu, ressuscitou, e pregou-se o Evangelho a todas as nações, começando por Jerusalém (Lucas 24, 46-47).

3 – Concepção da História

Alguns autores observam que Lucas tem uma concepção da história dividida em três partes.

O primeiro período é aquele em Israel: inclui tudo o que precede ao aparecimento de Jesus, e acaba com a prisão de João Baptista (Lucas 3, 19-21).

O segundo período é o de Jesus, que é o tempo que vai do Baptismo de Jesus (Lucas 3, 21) até à sua Ascensão (Lucas 24, 51; Atos 1, 9-11).

O terceiro período é o da Igreja, que começa no dia de Pentecostes (Atos 2, 1) e prolonga-se até à segunda vinda do Senhor (Atos 1, 11). Para dar lugar a este terceiro período, Lucas intercala entre o segundo e o terceiro, um episódio que os outros evangelistas não narram: a Ascensão do Senhor. A partida do Senhor deixa espaço para o tempo da Igreja, até à sua volta.

Para São Lucas, a vinda gloriosa do Senhor não é a Ressurreição, mas sim, a vinda no final dos tempos, quando o anúncio do Evangelho tenha chegado a todos os homens.

4 – Características da Narração

Na sua maneira de narrar, Lucas imita o estilo do Antigo Testamento. O leitor do Evangelho fica com a impressão de estar a ler a mesma história, começada no Antigo Testamento e continuada no Evangelho e no Livro dos Atos. Desta maneira, Lucas mostra como Deus começou a atuar no Antigo Testamento e continua atuando na ação de Jesus e dos Apóstolos: é uma só História de Salvação.

Lucas não cita tanto o Antigo Testamento como faz Mateus. No entanto, toda a sua narração reflete a primeira parte da Bíblia. Com alusões, formas de expressar-se, palavras conhecidas, o leitor vai se recordando dos textos bíblicos ao mesmo tempo que lê as páginas do Evangelho.

Lucas destaca-se pela delicadeza dos seus sentimentos. Ao ler a sua obra, vê-se que tem o cuidado de omitir tudo aquilo que possa resultar não produtivo para o leitor.

As partes desagradáveis dos outros Evangelhos, no de Lucas são omitidas, dissimuladas ou atenuadas. Omite toda a situação na qual uma pessoa possa aparecer digna de repressão, e se não se pode omitir, explica tentando suavizar a questão ou então de desculpar.

Discretamente, São Lucas deixa fora do seu livro todos os elementos que podem ofender ou causar discórdias. Ele compreende que a comunidade precisa de uma palavra que pacifique, e por isso omite o que possa ser causa de repreensões ou de censuras.

Lucas tem predileção pelos personagens femininos. É o que mais mulheres nomeia, retratando-as como figuras exemplares do verdadeiro cristão em diversas situações: a pecadora arrependida (7, 36-50), as mulheres que ajudam a Jesus (8,1-3), as hospitaleiras (10,38-41), as que choram (23,27), as que contemplam (23,49), as que evangelizam (24, 9.11), etc.

Mas é sobretudo Maria, a Mãe do Senhor, aquela que Lucas delineou com os traços da mesma Igreja. Devemos recordar também Isabel, Ana a profeta, a viúva de Naim, para além de todas as outras que aparecem também nos restantes Evangelhos.

No Livro dos Atos: Tabita, Lidia, Priscilla, Maria a mãe de Marcos, etc. Recordemos ainda as personagens femininas das parábolas: a viúva importuna e a mulher que perdeu a moeda de prata.

5 – A Comunidade dos Destinatários

A primeira geração cristã estava constituída na sua totalidade por judeus. Eles iam ao templo, ofereciam sacrifícios, respeitavam as leis judaicas, reuniam-se nas sinagogas, etc. E como se entende até ao dia de hoje, a religião judaica é a dos membros do povo judaico, não se predica aos demais, nem se procura que estes se convertam.

Desta forma, os primeiros cristãos não tentaram lançar uma missão aos pagãos durante esses primeiros anos. No entanto, aconteceram coisas extraordinárias:

Em primeiro lugar, São Pedro batizou um centurião pagão, por causa de uma revelação especial de Deus (Atos 10). Isto causou grande revolta na comunidade primitiva, e Pedro teve de dar explicações aos presbíteros reunidos em Jerusalém por ter recebido na comunidade um homem que não era judaico (Atos 11, 1-18).

Em segundo lugar, São Paulo foi predicar fora da Judeia e fê-lo de forma igual, tanto a judeus como a pagãos, exigindo a todos a fé em Cristo e o baptismo como única condição para ser cristão.

Enquanto os servidores de São Paulo insistiam em que somente era necessário ter fé em Cristo para ser cristão, os judeus de origem judia da comunidade de Jerusalém, exigiam a circuncisão e a aceitação de todas as leis e tradições judaicas.

Eles entendiam que era necessário ser judeu para poder ser cristão (Atos 15, 1-5). Esta polêmica terminou no Concílio de Jerusalém, onde se definiu que a circuncisão não era obrigatória (Atos 15, 6-29).

Tudo indica que São Lucas siga os ensinamentos de São Paulo. O seu ambiente é o da missão aos pagãos. Lucas vê o grande perigo da divisão que existe na Igreja: muitos cristãos de origem judaica não compreendem bem a novidade do cristianismo e pensam que é necessário conservar a Lei e todas as tradições do judaísmo como condição para alcançar a Salvação.

Por outro lado, alguns dos que seguem São Paulo pensam que se tem de romper definitivamente com o judaísmo e com o Antigo Testamento.

São Lucas fez um admirável trabalho conciliador, mostrando que se tinha de recolher a herança do judaísmo, e ao mesmo tempo predicar a novidade de Cristo, abrindo-se a todas as nações.

6 – Resposta de São Lucas

A chave para descobrir qual é o pensamento de São Lucas encontra-se no centro de toda a sua obra, isto é, no ponto em que ele termina o Evangelho e começa o Livro dos Atos.

É no discurso que pronuncia Jesus diante dos Apóstolos no momento da Ascensão: “Assim está escrito que o Messias havia de sofrer e ressuscitar dentre os mortos, ao terceiro dia; que havia de ser anunciada, em seu nome, a conversão para o perdão dos pecados a todos os povos, começando por Jerusalém.” (Lucas 24, 46-47)

Nestas palavras, Jesus diz aos seus discípulos que nas profecias do Antigo Testamento há três coisas sobre o Messias: tem de sofrer, ressuscitar dos mortos, e em seu nome deve-se predicar a todas as nações, começando por Jerusalém.

A terceira parte – predicar a todas as nações – é o que São Lucas traz de novidade. O Kerygma da Igreja primitiva, assim como se encontra em São Paulo e nos outros evangelistas, concentra-se em que o Messias tem de padecer e ressuscitar. Mas a predicação a todas as nações é algo próprio de São Lucas. Para Lucas, as profecias incluem este terceiro elemento do Kerygma, e por isso o seu livro não pode ficar concluído com a ressurreição do Senhor, mas sim, estender-se até à predicação dos Apóstolos.

O anúncio do Evangelho a todos os homens faz parte das profecias messiânicas e o seu cumprimento é também “evangelho”. Se quiséssemos resumir numa só palavra o que significa “evangelho” (boa noticia) para São Lucas, deveríamos dizer que é “universalismo”: “Deus quer a salvação de todos os homens “ e cumpre-o enviando os Apóstolos – como São Paulo – para que anunciem a salvação até aos confins da terra “…começando por Jerusalém”.

Desta forma, São Lucas indica que a abertura às nações deve-se dar sem se separar de Israel. Ao fundar o “kerygma” em “tudo o que está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lucas 24, 44), deixa bem claro que o Antigo Testamento continua tendo valor para os discípulos de Jesus.

7 – O Espírito Santo

Os outros evangelistas encontraram em Jesus o centro de todo o seu relato, porque tratam só dos feitos e palavras do Senhor, mas São Lucas tem uma perspectiva mais ampla: segundo a sua concepção do Kerygma, deve-se incluir também a predicação a todas as nações. Por esta razão, para dar unidade a toda a sua obra, introduz de uma maneira mais destacada a ação do Espírito Santo.

Nos seus livros, Lucas dá especial importância à presença e à ação do Espírito Santo. É Ele que dá unidade a toda a sua obra (e que através do qual se dá toda a ação).

O Espírito inspira as personagens do Antigo Testamento (Lucas 1, 15; 1, 41; 1, 67); desce sobre Maria para que conceba Jesus (1, 35); Isabel e Zacarias ficam cheios do Espírito Santo (1, 41.67) e falam movidos por Ele, assim como Simão (2, 26-27); o Espírito desce sobre Jesus (3, 21-22) e leva-o ao deserto para ser tentado (4, 1) e à Galileia para que comece a sua missão (4, 14.18).

A primeira predicação de Jesus começa com uma citação do Antigo Testamento (Lucas 4, 18-19; ver ainda Atos 10, 38). Jesus enche-se de alegria no Espírito Santo (10, 21) e o Pai dará o Espírito a todos aqueles que O peçam (11, 13). Jesus mesmo enviará o Espírito Santo sobre os Apóstolos depois da Ascensão (Lucas 24, 49; Atos 1, 4-5.8). Com a força do Espírito, eles transformam-se em testemunhas para anunciar o Evangelho em todo o mundo (Atos 1, 8).

Efetivamente, o Espírito desceu sobre a comunidade reunida (Atos 2, 1-36; 4, 31). Lucas elege a solenidade de Pentecostes como marco para relatar a vinda do Espírito Santo sobre os discípulos de Jesus. Esta festa judaica celebra o acontecimento narrado no livro do Êxodo (capítulos 19-24), quando Deus selou a Aliança com Israel e lhe entregou a Lei no Monte Sinai, entre trovões e fogo.

Também Lucas descreve um dia de Pentecostes em que Deus entrega o seu Espírito num lugar alto, no meio do ruído de trovões e com fogo. No entanto, no Monte Sinai estavam só as 12 Tribos, e Lucas nomeia todos os povos da terra (Atos 2, 9-11).

Também os novos convertidos recebem o Espírito Santo (Atos 2, 38-39; 9, 18; 10, 44; etc.), tanto judeus como pagãos (Atos 10, 44; 11, 15-17). O Espírito dá testemunho junto aos Apóstolos (Atos 5, 31), está presente nos momentos das grandes decisões (Atos 15, 28), elege os novos missionários para que vão predicar aos pagãos (Atos 13, 2) e guia-os no seu trabalho (Atos 13, 4; 16, 6-7), os Apóstolos concedem também o Espírito Santo aos discípulos (Atos 8, 15-17; 19, 6).

Desta maneira, Lucas demonstra de forma inequívoca que esta força que agora une todos os povos, já não é a Lei, mas o Espírito de Deus, e que o impulso que leva a Igreja a abrir-se aos pagãos, provém de Deus. Não se trata de um capricho de São Paulo, mas de um plano de Deus que tem de se levar a cabo, porque isso consta nas Sagradas Escrituras e é o mesmo Espírito que elege os evangelizadores e que os guia, para que a Salvação chegue até aos confins da terra (Atos 13, 47).

8 – Temas Prediletos de Lucas

São Lucas dá grande importância às passagens onde se dá relevo à misericórdia de Deus: o amor de Deus não tem limites. Pode-se citar por exemplo o capítulo 15, onde se encontram três parábolas sobre este tema: a ovelha perdida, a moeda perdida e a do filho perdido ou parábola do filho pródigo.

A importância que Lucas dá à misericórdia de Deus, tem por objetivo mostrar a atitude que se deve ter para com os pagãos: eles são os deserdados, excluídos da história da Salvação, a quem Deus, compadecido, quer salvar.

Como continuação a este tema, está o tema dos “grandes perdões”. Pode-se mencionar a passagem da pecadora arrependida (Lucas 7, 36-50), a conversão de Zaqueu (Lucas 19, 1-10), a oração de Jesus por aqueles que o estão a crucificar (Lucas 23, 24), as palavras ao bom ladrão (Lucas 23, 43).

Em vez de apresentar uma multidão agressiva ao pé da Cruz, diz que o povo voltava a casa batendo no peito, em sinal de arrependimento (Lucas 23, 48). No Livro dos Atos, aparecem as grandes multidões que se arrependem (Atos 2, 41; 4, 4; 5, 14; 6, 7; 8, 12; 9, 35).

O Evangelho de Lucas tem como destinatários os pagãos. Apesar de na vida de Jesus não haver muitas coisas para falar deles, Lucas procura elementos entre o que Jesus fez com aqueles que não pertenciam ao povo judaico. Por isso se mencionam os samaritanos: entre os leprosos curados pelo Senhor, um era samaritano (Lucas 17, 16), o samaritano misericordioso da parábola (Lucas 10, 30-35), fala-se muito bem do centurião romano (Lucas 7, 5) e mesmo Jesus admira-o (7, 9), o Livro dos Atos, na sua maioria, ocupa-se da predicação aos pagãos.

No Evangelho, como em muitas passagens dos Atos, aparecem destacados os textos sobre a oração. Lucas diz que é necessário rezar sempre, que há que rezar sem interrupção (Lucas 11, 1-13; 18, 1-8; 21, 36).

Em momentos distintos mostra Jesus em oração: no seu batismo (Lucas 3, 21), na eleição dos Apóstolos (Lucas 6, 12), durante a sua predicação (Lucas 5, 16; 9, 18; 11, 1), na transfiguração (Lucas 9, 28-29) e na Cruz (Lucas 23, 34). Também outros personagens rezam: Maria, Mãe de Jesus (Lucas 1, 46-55), Zacarias (Lucas 1, 67-79), os Anjos (Lucas 2, 14), Simão (Lucas 2, 29-32), Ana, a profeta (Lucas 2, 37-38), a comunidade cristã (Atos 1, 14; 1, 24; 2, 42; 4, 24-31), Cornélio (Atos 10, 2.31), Pedro (Atos 10, 9), etc.

A necessidade da oração, dada com normalidade por Mateus, já que se dirigia a um auditório de maioria judaica, é também destacado por Lucas, que se dirige a um público que vem principalmente do paganismo.

Outro tema de grande relevância no Evangelho de Lucas, é o das grandes renúncias. É outra característica em Lucas, que para seguir Jesus, deve-se renunciar a tudo (Lucas 14, 33). Também os que seguem Jesus abandonam tudo (Lucas 5, 11; 5, 28; etc.). É necessário carregar a cruz “cada dia” (Lucas 9, 23) e renunciar a tudo o que se ama e a tudo o que se tem (Lucas 14, 25-33). Os membros da primeira comunidade cristã renunciaram a todos os seus bens (Atos 2, 45; 4, 32-35.37).

A São Lucas agrada destacar as grandes multidões à volta de Jesus. Como uma prefiguração da universalidade da Igreja, à volta de Jesus existe uma multidão agrupada, formada por pessoas que vêm de todas as partes, incluindo dos povos pagãos (Lucas 5, 15; 6, 17-19; 7, 11; 8, 4; 12, 1; etc.). Lucas assinala que são os pecadores que se aproximam de Jesus (Lucas 5, 29-32; 15, 1-2; etc.).

Uma das características das multidões que se agrupam em torno de Jesus, á a alegria e o louvor a Deus. Diante de cada feito realizado por Jesus, a multidão reage, enchendo-se de alegria e louvando a Deus (Lucas 2, 20; 5, 26; 7, 16; 10, 17). Também a comunidade cristã tem como nota característica a alegria (Atos 2, 46-47; 3, 9; 5, 41; 8, 8-39; 13, 48; 15, 3).

9 – Os Pobres e os Ricos

Os ricos são mencionados com frequência na obra de Lucas e normalmente com atitudes negativas. Aparecem pela primeira vez nos lábios da Virgem Maria, no cântico do Magnificat (Lucas 1,52-53).

Reaparecem depois na boca de Jesus no sermão das bem-aventuranças (Lucas 6, 20 e 24), na parábola do rico insensato (12, 16-21) e na famosa frase do camelo, que passará pelo buraco de uma agulha mais facilmente, que um rico no Reino de Deus (Lucas 18, 24-25).

Pelo contrário, os pobres são vistos com predileção e recebem a notícia de que a sua situação mudará (Lucas 6, 20-25; 16, 19-31).

Lucas nunca louva a pobreza como algo que deve permanecer, mas sim, que “Deus elevou os humildes e encheu de bens os afamados (1, 52-53; 6, 20-21) e na comunidade cristã ideal “não há pobres entre eles” (Atos 4, 34). Isto significa que os pobres são felicitados porque a sua situação mudará.

A parábola do rico e de Lázaro (Lucas 16, 19-31) é a que parece dar a chave para compreender tudo o que São Lucas diz sobre os pobres e ricos. Aparentemente trata-se de uma parábola que fala sobre a riqueza e a pobreza.

Em nenhum momento se diz ou insinua-se que o rico fosse um malvado, ou que o pobre fosse bom ou piedoso. Diz-se simplesmente que o pobre vai para o “seio de Abraão”, porque durante a sua vida recebeu coisas más, e que o rico é condenado só pelo facto de ter recebido bens na sua vida terrena (Lucas 16, 25). Até este ponto, pareceria que os pobres são felizes porque a sua situação mudará depois da sua morte. No entanto, a última afirmação do livro é muito diferente: em vários textos do Livro dos Atos, Lucas descreve a comunidade cristã primitiva (2, 42-47; 4, 32-35; 5, 12-16).

No primeiro destes textos diz-se que os primeiros cristãos “se reuniam todos assiduamente para escutar os ensinamentos dos Apóstolos e participar na vida comum, na fracção do pão e nas orações…” (2, 42-45).

Enquanto os membros da comunidade vendiam os seus campos para repartir o dinheiro, o traidor Judas utilizou o seu dinheiro para comprar um campo (Atos 1, 18). Dividiam os bens, ao mesmo tempo que recebiam em comum os ensinamentos, a celebração da Eucaristia e a oração.

A distribuição dos bens entre todos, é uma forma de expressar a união de todos os corações, que começa com a participação, em comum, de todos os bens que receberam de Deus, por meio do Evangelho. Mais adiante, volta ao mesmo tema e afirma que não havia pobres entre eles (4, 34). A pobreza tinha desaparecido, a partir do momento que dividiam os seus bens e assim todos comiam com alegria (2, 46).

Na comunidade cristã cumpre-se o anúncio das bem-aventuranças, porque já neste mundo muda a situação dos pobres, dos famintos e dos que choram. Os ricos, tão mal vistos por Lucas, seriam então os que não partilhavam com os outros e ficam com tudo só para si.

São Lucas escreve: “A multidão dos que tinham abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma. Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum” (Atos 4, 32). São frases que se encontram nos escritores gregos quando definem ou descrevem a amizade. Longe de pensar num sistema econômico, Lucas descreve a comunidade cristã como uma comunidade de amigos.

Mas não é só um ideal para os perfeitos ou uma virtude humana, como pensavam os filósofos gregos, mas sim uma realidade que acontece já neste mundo, porque na comunidade cristã tudo se partilha a partir do amor que Cristo depositou no coração de cada um. Por isso, põem à disposição dos outros tudo o que têm, com a finalidade de que os aproveitem, “segundo a necessidade de cada um” (Atos 2, 45; 4, 35).

O mundo pagão, ao qual se dirige a pregação de Lucas, estava cheio de contrastes económicos: ricos, pobres, miseráveis, patrões e escravos. Lucas oferece-lhes um exemplo de uma sociedade diferente, onde se vive como irmãos e desaparecem as desigualdades irritantes. Muito mais do que recomendar aos cristãos que sejam generosos com os pobres, Lucas propõe que todos partilhem, para que desapareçam as diferenças sociais.

Voltando à parábola do rico e do pobre (Lucas 16, 19-31), alguns detalhes do relato parecem aludir a outra situação, que vai para além do problema entre ricos e pobres: o rico dirige-se a Abraão chamando-o de “pai” (16, 24.27 e 30), enquanto que Abraão responde chamando-o de “filho” (16, 25); este rico tem irmãos, dos quais se diz que “têm a Moisés e aos Profetas” (16, 29); por último afirma-se que estes irmãos “não se convencerão, ainda que ressuscite um morto” (16, 31).

Todos estes detalhes tomados em conjunto, fazem pensar que esta parábola tem elementos alegóricos: o rico seria o povo judeu (tem como pai a Abraão, tem Moisés e os Profetas, não aceitou a mensagem da ressurreição do Senhor); este povo é rico porque recebeu uma quantidade de bens da parte de Deus: a eleição, a aliança, os mandamentos, o culto, a predicação de Deus, etc., enquanto que o pobre representaria os pagãos, que não receberam nada disto (por exemplo Romanos 9, 4-5; Efésios 2, 11-12).

Então, se Lucas põe um rico como figura do povo judeu e um pobre como figura do povo pagão, chega-se à conclusão de que o primeiro bem que o rico deve partilhar é o Evangelho. Se todos devem partilhar as riquezas, a primeira destas é a salvação, para que esta chegue a todos aqueles que ainda não a têm.

Lucas quer criar nos seus ouvintes uma consciência de que, para ser cristão, tem que se partilhar, sendo uma necessidade interior à qual não se pode renunciar nem se deve descurar. No entanto, deve-se partilhar a todos os níveis, começando pelos mais importantes, o Evangelho, até aos que são menos importantes, mas necessários, como os bens materiais.

10 – Conclusão

Lucas dá uma resposta serena a uma comunidade complicada. Tomando como ponto de partida as profecias do Antigo Testamento, mostra que a vontade de Deus é o anúncio do Evangelho a todas as nações sem distinção.

A atitude de Jesus para com os pobres, pecadores e mais desfavorecidos, é a pauta para indicar como se deve proceder na pregação, em relação aos pagãos. Eles são os mais pobres e os mais necessitados, aos quais tem de se dar esta riqueza que Deus deu a Israel e que é a Salvação.

Ao mesmo tempo, Lucas vai mostrando a imagem da comunidade cristã, segundo a vontade de Deus: uma comunidade que louva a Deus alegremente, onde todos são irmãos e amigos, onde se reza sem interrupção e onde não há pobres, porque se partilha tudo o que se tem.

São Lucas dá o exemplo de como se deve intervir num momento de confusão e polêmica: com a sua palavra serena, fez levantar os olhos dos cristãos, para que compreendam que todas as mudanças que vão acontecendo na Igreja dessa altura, são consequências da intervenção do Espírito Santo, que dá vitalidade, para que a comunidade não se encerre em si mesma, mas sim, às necessidades do mundo, levando a sua palavra de Salvação.